O controverso Dia da Consciência Negra, do 20 de novembro, que nalguns municípios brasileiros é feriado, está mais para a negritude do que para a branquidade. Trata-se de um dia para o negro dizer que ele tem orgulho de sua cor. Como o branco já é dono da bola, do campo e do juiz, não precisa se melindrar.
A literatura, como mostra a etimologia da palavra, trabalha com as letras, portanto é arte da escrita. Como no início do século 20, 90% da população brasileira era analfabeta, época da libertação dos escravos recente, o grande contingente de analfabetos era composto de negros.
Em termos de escritores negros, consequentemente eram poucos e camuflados. Geralmente era gente que estudou por bondade de senhores piedosos, como Cruz e Souza que era filho de alforriados e afilhado de um marechal na Ilha do Desterro, hoje Florianópolis-SC.
Famosa é a branquidade editada pela elite branca de Machado de Assis, fabricada por fotógrafos e pintores, que aumentava conforme crescia sua importância como escritor. Não havia ainda o Photoshop, mas a imagem do escritor carioca branqueava-se. Tudo para esconder a sua negritude.
Se era difícil para o homem negro ser escritor, imagine a dificuldade para a mulher negra escritora. A dificuldade era dupla: por ser mulher e por ser negra. Mulher, branca mesmo, precisava autorização do marido para expressar seus sentimentos. Leia a biografia de Cora Coralina.
Há exemplares de escritoras negras no Brasil? Pouquíssimas. A primeira delas é Maria Firmina dos Reis (1822-1917), maranhense, professora pública do município de Guimarães. Fez de seu primeiro romance, Úrsula (1859), que não era livro de perfumaria, um instrumento de crítica à escravidão por meio da humanização de personagens escravizados.
Professora Régia Agostinho da Silva, professora da Universidade Federal do Maranhão escreveu: “Em sua literatura, os escravos são nobres e generosos. Estão em pé de igualdade com os brancos e, quando a autora dá voz a eles, deixa que eles mesmos contem suas tragédias. O que já é um salto imenso em relação a outros textos abolicionistas”. A professora é autora do artigo “A mente, essa ninguém pode escravizar: Maria Firmina dos Reis e a escrita feita por mulheres no Maranhão”.
Maria Firmina dos Reis, primeira negra que foi professora concursada, por isso tinha sua independência econômica, era também uma sagaz militante do movimento abolicionista do Maranhão. Possui certo trânsito pela imprensa de seu estado. O seu segredo para sua sobrevivência política era não radicalizar demasiadamente o seu discurso.
Ela também foi esbranquiçada no seu retrato na Câmara Municipal de Guimarães como também no busto da escritora no Museu Histórico do Maranhão também a retrata embranquecida, de nariz fino e cabelos lisos.
Atualmente, a lista de escritoras negras em evidência são Carolina de Jesus (1914-1977), Conceição Evarista (viva- 1946) e várias outras da modernidade.
No 20 de novembro de 2021 tivemos muito o quê comemorar, principalmente depois do assassinato de George Floyd praticado pela polícia norte-americana. A mídia ajudou muito. A reconstrução da imagem verdadeira de Maria Firmina dos Reis também é uma notícia alentadora na valorização do negro do Brasil.
*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor.