No decorrer dos anos, cada Natal, cada festa de ano-novo tem um caráter diferente em nossa vida. Alguns alegres, outros tristes, mas tudo fazendo parte do plano divino.
Neste fim de 2021, sem contar a tragédia da pandemia de covid-19, na minha família a espada de Dâmocles da modernidade caiu sobre a Helena (esposa), que é o câncer. Esse mal que assusta a humanidade.
No caso dela, a espada é uma questão genética. Como última pessoa viva de uma irmandade de nove, cinco morreram disso, seu organismo também produziu a doença.
Ninguém gosta de receber a notícia em setembro, cirurgia marcada em novembro, convalescença durante as festas. Aliás, em tempo algum.
Numa checagem do sistema circulatório da Helena, exames de rotina, o pulmão saiu na tomografia como papagaio de pirata do coração. Havia uma mancha no intruso.
Mais checagem: é tumor.
Mais checagem: é maligno.
Mais checagem: tumor do tamanho de limão galego.
Análise do problema: o médico perguntou se ela havia fumado. Sim, há 30 anos. Ele sorriu com certeza por trás da máscara, não por sadismo, apenas porque sua tese foi comprovada mais uma vez. Fumou, f....!
Sentença: cirurgia. Retirar metade de um dos pulmões. Não era semana santa, mas a via sacra durou semanas.
Nessa hora, me lembrei de um haicai de Paulo Leminski: "não discuto / com o destino / o que pintar / eu assino". E fomos tomar as providências.
As rezas dispararam, até terço pelo zap. Parentes abestalhados. Filhos chorosos. "Eu não queria isso pra mim" - lamentava Helena. Oito horas de cirurgia, três dias de UTI, dezenove dias de hospital.
Isso em Araçatuba, no hospital da Unimed, pelas mãos dos médicos Flávio Garbelini, Hélio Poço e equipe, mas poderia ter sido também na Santa Casa.
É Natal! Helena passa bem. Todos alegres. Até parece que salvamos uma pessoa que ia caindo num poço profundo e a seguramos pelos sapatos. Este Natal tem gosto de ressurreição.
Este problema parece ser só do cronista e ele o divulga no sistema de alto-falante da cidade porque é um falastrão. Nem tanto. Na humanidade é assim: o problema de um é de todos, por mais calado que se fique. Pela arte, por sua mimese, é possível chorar juntos.
*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor.