"É você que ama o futuro
E que não vê
Que o velho sempre volta"
(Paródia de trecho da letra da música "Como nossos pais", de Belchior)
Muitas vezes se ouve que o problema do Brasil é a falta de educação (com escola de qualidade), assim as pessoas ganham consciência política. Só não sabemos de que lado.
Mas não fiquemos no campo conceitual. Algumas pessoas escutam e não entendem, porque a teoria não é acessível a todos, vamos à parábola, como fazia Jesus Cristo no seu tempo.
Seu Deocleciano era um sujeito rude, não muito alto. Vangloriava-se de não ter ido a médicos, nasceu pelas mãos de uma parteira. Era contra vacinas.
- Não sou dama para ficar indo ao médico toda hora... Ainda mais se for pra fazer o exame da prosta.
Embora morasse na zona urbana, a sua casa tinha todas as características da antiga zona rural. Tinha água, luz e esgoto porque era uma exigência, não gostava de tais luxos. E esse negócio do fio para ligar os aparelhos na tomada ter três pinos é um desaforo.
Outro dia, num supermercado, que passou a frequentar depois de muita briga, gostava mesmo é do antigo empório, com balcão, estava sem máscara e não obedecia o distanciamento entre as pessoas. Esse negócio de coronavírus era negócio inventado pelos doutores para pôr os caboclos de joelho.
A funcionária do supermercado lhe fez uma reprimenda. E a resposta veio grossa:
- Se eu ficar doente, o problema é meu!
A moça deu um sorriso amarelo. E eu me contive para não dar berros no ouvido daquele ignorante. Pensei comigo: deve ser eleitor do Bolsonaro.
O problema não é só da moça, é meu também, de todos nós, porque vai contaminar mais gente. Já descobrimos que vivemos numa bolha de ar com a Terra dentro. Se eu não elimino os focos de dengue de meu quintal, prejudico toda a vizinhança. E assim vai.
Além do mais, se aquele ignorante ficar doente, vai gastar dinheiro do governo (que é composto por impostos pagos por todos) com um sujeito irresponsável. E não existe só o Seu Deocleciano com tal ignorância. Há muitos. Está melhorando, mas há um resquício intolerável.
E assim fiz a minha compra rapidinho. Ao passar no caixa, está ele na minha frente com sua digníssima esposa e a compra do mês. Ele só foi lá para pagar, porque não repassa dinheiro para a mulher. Não confia em mulher.
A caixa pergunta:
- No cartão?
Aí veio o discurso:
- Meu negócio é no dinheiro!
E falou um monte de xingamentos de quem usa cartão.
E a moça do caixa teve que testar nota por nota para ver se havia alguma falsa no pacote. E demorou. E Seu Deoclécio bufando de raiva.
- Se fosse no cartão, seria bem mais rápido! O senhor teima em ser atrasado - disse a caixa.
Os impacientes, inclusive este cronista, gritamos em uníssono:
- Bem feito, velho atrasado!
No final do imbróglio, fui ter uma conversinha de pé de orelha com o Seu Deocleciano:
- Posso fazer uma pergunta?
- Claro, doutor!
- Em quem o senhor votou para presidente no ano passado?
- O senhor não vai ficar bravo se eu for sincero? Eu acho que não foi o seu candidato.
- Aceito a sua resposta, seja qual for ela - respondi.
- Votei naquele rapaz indicado por Lula, claro! O que o barbudo falar eu sigo.
Cheguei mais uma vez a provar que a cidadania não é lógica e nem ideológica. Não tem voto certo.
* Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP.