Irmão é uma entidade que é imposta. A irmã ou o irmão são criaturas da mesma ninhada. O irmão ou irmã pode ser cheio de defeitos. Apenas eu posso apontá-los, mas os outros se o fizerem, quebro-lhe a cara. "Quebrar a cara" é uma expressão que se usava no antigamente do meu grupo escolar. Hoje é politicamente incorreta.
Os leitores ficaram sabendo que perdi meu irmão seguinte a mim, no quarteto criado por Dona Augusta e Seu Luís: Hélio, Gervásio, Alberto e Luís Augusto. Com todas as letras: Gervásio Antônio Consolaro.
Ao tê-lo, minha mãe deve ter tido uma gravidez difícil, amedrontada pelo primeiro parto do qual nasceu este croniqueiro foi muito difícil. Entre os irmãos, ele era o doentinho, fraco, amarelento, o gago. Vivia com minha mãe no consultório do dr. Alfredo Dantas. A hipocondria dele deve ter nascido dessa fragilidade.
Como nossa diferença de idade era pequena, menos de três anos, não consegui fazê-lo palmeirense como os outros irmãos, se tornou um santista (ou pelezista), mas não era fanático.
Morávamos no bairro rural de Cafezópolis, Araçatuba (SP), andávamos 10 km (ida e volta) para alcançar o antigo primário no Grupo Escolar Francisca Arruda Fernandes, bairro Santana, onde hoje funciona a FEA (Fundação Educacional de Araçatuba).
Chegávamos famintos em casa, depois de muita bagunça pela estrada. Numa dessas chegadas, fui tomar o pão da mão dele, Ele se defendeu de meu chute com a faca de ponta com que estava cortando o pão, que entrou em minha perna direita. Chegou a ficar espetada, para desespero de minha mãe. Naquela época não havia os recursos de hoje, a ferida foi curada à base de ervas. Tenho a cicatriz até hoje.
A fisionomia dele era mais para o avô paterno, Vitório Fortin, mas de espírito era um legítimo Consolaro. Dos quatro filhos de Dona Augusta e Seu Luís, era o mais galã, mais vaidoso. Ficava bravo se alguém insinuasse que era mais velho do que este croniqueiro. Penso que morreu primeiro, sendo mais novo, para que eu tivesse oportunidade de fazer esta crônica.
Dos quatro, ele seguiu o caminho do sistema, nas coisas certas e erradas. Não foi estudar fora, não saiu da casa dos pais para morar sozinho ou em república. Não aprendeu a se virar sozinho dentro de uma casa. A minha cunhada, mulher dele, se queixava desse negócio de querer tudo na mão, habituado por minha mãe.
Para entrar no sistema, ele usou os concursos públicos, uma ferramenta que só dependia dele, em que tinha habilidades, sem precisar de ser um bom orador. Virou um concurseiro de mão cheia. Foi galgando os concursos pelo nível de dificuldade, parou quando aprovado para ser fiscal de renda do Estado de São Paulo.
Chegando à Secretaria Estadual da Fazenda, foi ocupando os cargos sem fazer falcatruas, como um genuíno Consolaro. Até mesmo na administração municipal de Araçatuba, quando serviu por quatro anos, no primeiro mandato de Dilador Borges (PSDB).
Construiu um pequeno patrimônio, economizando dinheiro do bom salário. Nesses cargos, ele era de um lado político, eu de outro, mas estabelecemos tacitamente uma convivência familiar sem nunca chegar ao conflito. Foi um homem público com galhardia.
Nunca alguém me procurou para reclamar de sua atuação como chefe. Nem mesmo empresários se queixaram comigo que Gervásio havia cometido abuso de poder. Aos poucos, foi se livrando da gagueira acentuada, sabia escolher as palavras quando dava entrevistas à imprensa.
Ele nasceu depois de mim, morreu antes. Isso não importa, viveu bem seus 71 anos. Não quero com esta crônica torná-lo santo, pois escondi nas dobras do texto seus defeitos, mas foi um grande homem.
(https://018news.com.br/materia/ex-delegado-tributarios-de-aracatuba-morre-aos-71-anos)
Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor
(Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação)