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1º CONTO CICLO DA VIDA

“Na periferia dá-se a impressão de que sequer existimos, que somos seres invisíveis, ninguém nos nota ...”

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Quem me vê numa bela casa e empoderado, não sabe que fui um menino frágil e amedrontado. Tudo muda ... lembro do dia que considero o mais marcante para na vida, como se fosse hoje. Era adolescente, acordei, tudo estava igual.

 

O barraco bagunçado, meu pai enrolando um “baseado” e a minha mãe tinha saído para “vender o corpo”. Ele, ao perceber que acordei, encarou-me, dizendo: - O que foi? Por que está me olhando? Em seguida, deu-me um tapa no rosto. Abaixei a cabeça e nada fiz ou respondi.

 

Meu irmão, ainda criança, dormia. Sabia que quando ele acordasse estaria com fome e o leite acabara, mas nossa mãe traria mais tarde. Até lá, eu brincava com ele, tentando enganar a sua fome. Meu pai não trabalhava e já estivera preso.

 

Nesse fatídico dia, como de costume, ele fumava maconha e tomava pinga. Ele saiu cedo do barraco e foi vender droga na rua, a mando do então traficante “geral” do bairro. Ele era violento e tenho marcas pelo corpo das suas agressões.

 

Ele me dizia: - Você não serve para nada! Em seguida, dava-me socos e chutes. Era um covarde! Sempre tive medo de o meu pai fazer algo de mal conosco, por isso, não o enfrentava. Tinha pesadelos sobre isso ... acho que ele era psicopata, pois não demonstrava sentimento por ninguém; tinha um olhar fixo, que causava temor.

 

A esperança para tocar a vida eram os conselhos da minha mãe, de que no futuro eu seria uma pessoa importante e do bem. Nunca estivera no centro da cidade, sendo a periferia a minha realidade.

 

Quando criança frequentei uma escola na favela, mas tive que abandoná-la e ficar em casa para cuidar do meu irmão. Gostava de ler, aprendi na escola, mas não tinha livros em casa; lia jornal velho que achava na rua.

 

Lembro das aulas na escola, principalmente sobre contos infantis, que me fazia esquecer da vida ruim, como se viajasse a um lugar bonito.

 

Pensamentos ruins também vinham: certo dia, depois do meu pai bater na minha mãe, peguei uma faca da cozinha para matá-lo, enquanto ele dormia, mas, desisti. Ouvia na Tv que estudar é direito de toda criança ou adolescente e que é crime pais agredirem filhos. Mas, aprendi com o tempo, que não vivemos num mundo ideal, quiçá na favela.

 

Na periferia dá-se a impressão de que sequer existimos, que somos seres invisíveis, ninguém nos nota ... naquela época, eu queria mesmo era ter passeado, estudado, brincado, como toda criança ou adolescente, mas, não pude. Eu chorava escondido, num sofrimento sem fim. Eu não tinha amigos ou alguém para conversar. Falava sozinho às vezes, para aliviar a angústia do meu coração.

 

Nesse fatídico dia, ao voltar da rua, minha mãe abraçou-me apertado e disse: - Filho, você é bom, inteligente e será alguém importante na vida; vamos sair desse inferno e de perto do seu pai!

 

Emocionado, respondi: - Amo a senhora mais que tudo! Vou trabalhar e ajudá-la a sairmos daqui! É triste, mas ela fazia o que fazia para o nosso sustento, porque na favela não tinha emprego.

 

Em época de eleições pessoas passavam em casa pedindo voto aos meus pais, dando em troca dinheiro ou cesta básica. Passadas as eleições, nada mudava ... lembro, também, das pessoas das igrejas, que passavam da casa em casa pregando a “palavra” de Deus. Mas, pensava: se Deus realmente existe, por que nos deixaria sofrer tanto?

 

Por outro lado, se ele não existir, tudo é permitido? Chegou à noite, do mesmo dia, percebi minha mãe triste e lhe disse: - As coisas vão melhorar! A resposta dela, aos prantos, foi: - Sim, meu filho, eu sei. Tenhamos fé! Trocamos abraços e fomos repousar.

 

Antes de adormecer, tive um pressentimento esquisito, que algo ruim poderia acontecer.

 

Durante a madrugada, dormíamos, quando entraram no nosso barraco homens armados e encapuzados. Derrubaram a porta e diziam aos gritos que o meu pai era “x-9”; não sabia, na época, o que isso significava, mas percebi que era algo grave. Em seguida, os homens atiraram e mataram todos. O barraco que era cinza e sujo, ficou vermelho de sangue.

 

Toda a minha esperança e sonhos acabaram ... em seguida, os assassinos disseram que não me matariam, para que eu contasse na favela que todo dedo-duro seria executado. Ficar vivo, para mim, foi um castigo. A maior injustiça, é que mataram a minha mãe e o meu irmão, pessoas de bem, inocentes ... meu pai merecia ser morto.

 

A polícia esteve no local pela manhã, mas nada fez, porque homicídio na favela é normal.

 

Passei anos abandonado num abrigo ... essa, pois, é a minha história, que toma os meus pensamentos dia a dia.

 

Depois de adulto, tudo mudou! Aprendi a ser malandro, a traficar e a roubar: a vida ensina de uma maneira ou de outra. Gostaria de chorar, como antes, mas não consigo. Cresci na hierarquia do crime e sou o líder do tráfico de entorpecentes na favela, inclusive, mandei matar todos os envolvidos no assassinato da minha família.

 

O destino quis assim, não eu; sou o resultado daquele (destino). Certo ou errado, faço do meu jeito. Se hoje sou bom ou mau, justo ou injusto, pouco importa. Vida que segue ... o destino, porém, não quis parar por aí e pregou mais uma peça.

 

Depois de relembrar o passado, em especial daquele trágico dia, estava em casa tomando uísque no bem-bom, acompanhado de belas mulheres, quando bateram à porta. Eram capangas do meu grupo trazendo para fins de castigo um adolescente órfão, morador de rua da favela, que se recusava a vender droga nas biqueiras.

 

Ao olhar para o adolescente, parece que me vi no espelho mais jovem e cheguei a arrepiar ... ele tinha belos cabelos, corpo esguio e olhos negros, como os da minha mãe. Perguntei ao adolescente: - Quem é você? Por que se nega a vender droga na minha favela? O pequeno rapaz, com o “nariz empinado”, respondeu: - Mano, pouco importa quem eu seja, mas não sou obrigado a vender droga e não faço aquilo que acho errado!

 

Certamente o adolescente não sabia da situação de risco que estava, ao falar comigo daquela maneira ... meus capangas queriam atirar nele, mas impedi.

 

Segui o meu instinto e descobri que tal adolescente era meu irmão, por parte de mãe, de pai desconhecido. Nunca disse a ele sobre o nosso parentesco. Passei, então, a tratá-lo como filho. Fiz tudo para o bem dele. Tirei-o da favela e o matriculei no melhor colégio da cidade. Tudo aquilo que não tive de bom nesta vida, esse menino terá! Ele terá na vida, principalmente, aquilo que eu não nunca tive: a possibilidade de escolha.

 

Acho que sou hoje uma mistura de “bandido com mocinho”. Bem ou mal, de certo modo, o sonho da minha mãe se realizou.

 

Adelmo Pinho é promotor de justiça em Araçatuba (SP), articulista e escritor

 

(Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação)


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